Mulheres e reprodução de papéis na sociedade de bonecas de pano

mulheres e sociedade de bonecas de pano
Um relato pessoal sobre mulheres, reprodução de papéis na sociedade e o desenvolvimento de uma sociedade de bonecas de pano!

Demorou alguns anos, 22 para ser mais exata, até que eu me desse conta do papel que cumpria na relação familiar, sobretudo perante minha mãe, a mulher na qual me espelhei. Não é que eu não soubesse. Por 2 anos, este foi o principal tema em minhas discussões semanais de terapia, mas foi quando olhei pela perspectiva de uma pessoa de fora que entendi como me colocava: uma boneca de pano moldada por sonhos de outros.

O primeiro impulso, foi olhar apenas o que estava à vista. Ou seja, duas mulheres ligadas pela maternidade. Não haveria, contudo, algo mais profundo, algo que se repete em todas as gerações? Foi então que me perguntei: não seríamos todas nós mulheres parte de relações sociais semelhantes no que apelido de “sociedade de bonecas de pano”?

Olhe ao seu redor. Talvez você já tenha se perguntado o mesmo que eu, e também procurado uma culpa. 

Em meu caso, seria mais fácil culpar minha mãe, por exemplo, mas não sei se posso atribuir a ela toda a responsabilidade. De um lado, somos ambas reflexos de histórias anteriores, as quais se repetem, se transformam, se finalizam. E somos parte dessa sociedade complexa, que nos oferece papéis a serem cumpridos, como se fôssemos marionetes. Maleáveis, nos deixamos conduzir. 

Entretanto, posso liberá-la – ou posso me liberar – dessa responsabilidade? Qual o limite da nossa responsabilidade pelo legado que perpetuamos ou que contribuímos para, então, modificar? 

Não tenho todas as respostas em mãos, mas o que posso fazer é compartilhar minha experiência e o que me fez entender mais sobre quem eu sou nessa sociedade de bonecas de pano. E é sobre isso que resolvi refletir neste texto.

Se sou feita apenas de exemplos, quem, na verdade, sou?

Por que sociedade de bonecas de pano, você deve se perguntar? 

Não é um termo do qual já tenho ouvido falar, mas uma metáfora para esse conjunto de papéis pré-determinados que, sobretudo mulheres, costumam preencher. 

“Seja bela, recatada e do lar”. “Seja tão bela quanto uma Barbie”.“Consiga o emprego que eu não consegui”. “Dê conta de tudo e seja a mulher-maravilha”. Quantos roteiros lhe apresentaram até hoje e quantos deles você performou, moldando-se à brincadeira tal qual uma boneca de pano?

Antes de tudo, somos seres sociais. Nascemos de outros seres humanos, relacionamo-nos com outros seres humanos e somos por eles influenciados. E como a biologia explica, o contexto condiciona nossa formação de tal modo, que até mesmo gêmeos idênticos, com igual carga genética, podem se desenvolver de forma distinta.

No entanto, assim como nos diferencia, o contexto também nos iguala. Não é de hoje que se fala de grupos de jovens que passam a repetir os mesmos comportamentos, como no uso de gírias e vestimentas idênticas. Porém, darei outro exemplo. Já ouviu falar sobre ciclos menstruais que se alteram conforme a proximidade de duas mulheres? E se mais do que isso nos espelhasse?

O que acontece é que vivemos numa sociedade que nos aproxima e nos distancia dos demais, como moléculas em movimento dentro um corpo. Temos autonomia, sim, mas dentro das condições a que somos expostas. 

Um jogo de bonecas e de amarelinha 

Então, a pergunta que não cala: qual o poder da relação de minha mãe no meu presente?

Quando me apego à ideia de que sou tudo aquilo que me foi colocado como exemplo, caio, assim, na teoria de que sou uma boneca a repetir as informações repassadas. 

Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana cuja identidade ainda se desconhece, consegue brincar bem com essa ideia de espelhamento em sua tetralogia Napolitana. E conta-nos, desse modo, a história de Lila e Lenu, na tentativa de fuga das condições do bairro em que vivem, inclusive no temor de repetirem a jornada de suas mães.

Como gosta de brincar com máscaras, Ferrante inicia a infância de suas protagonistas a partir da relação com elas, as bonecas e anúncios do que se tornaria a conflituosa relação.

O que Lila fala, através de sua boneca Nu, Lenu repete, através de sua boneca Tina. Até os nomes de seus reflexos se assemelham. E assim elas crescem, opostos conectados, como sombras a depender dos passos de quem toma a dianteira.

O que Lila dizia a Nu, eu escutava e repetia em voz baixa a Tina, mas com pequenas modificações. Se ela pegava uma tampa e a colocava na cabeça da boneca como se fosse um chapéu, eu dizia à minha, em dialeto: Tina, ponha sua coroa de rainha, senão vai ficar com frio. Se Nu brincava de amarelinha nos braços de Lila, pouco depois eu fazia Tina agir do mesmo modo (Amiga genial, Elena Ferrante).

 Mas não posso ser apenas isto, posso?

lila e lenu - a amiga genial - mulheres e bonecas de pano
Lila e Lenu na infância, personagens da série My Brilliant Friend, adaptação do romance de Elena Ferrante. [Fonte: Google]

Eternas sombras do passado

Ao olhar a relação com minha mãe, não vejo tanta diferença entre o que se passa com Lila, Lenu, Tina e Nu, senão pelo fato de que ela teve a vantagem de vir antes.

Caminhou 30 longos passos antes que eu pudesse ter a chance de respirar por mim. Foi quem me ensinou a falar, quem me ensinou a ler. E por mais que eu lute com o que me habita, é dela o jeito com que falo hoje. Ou seria o meu, uma transformação do que era original dela, uma transformação do que era original de minha avó, uma transformação do que era…

Tudo poderia ser diferente se os inputs iniciais fossem diferentes. Quem sabe pudéssemos voltar no tempo e alterar as cargas de conhecimento que nos foram colocadas ao longo de todos esses anos. Pequenas palavras, pequenos gestos, todos assimilados em um processo de repetição e reestruturação; iguais, mas diferentes.

Resumindo-me ao passado, entretanto, corro o risco de confirmar a hipótese de que, mais do que uma boneca, sou também uma máquina que só funciona a partir das informações inseridas. E não me desvencilho do pensamento de que, de uma forma ou de outra, sou programada para seguir a história de uma sociedade que comanda minha vida.

Para fugir disso, então, analiso socialmente. Como podemos querer que mulheres que foram ensinadas a definir suas identidades a partir do externo lutem contra esse sistema? 

A perpetuação do mito da mulher ideal

Seja mais feminina, seja mais bela, seja mais autêntica, seja mais forte, fale baixo, fale alto, sorria sempre, pois você está sendo filmada. Seja uma marionete de desejos alheios e, assim, você encontrará a plenitude.

Por que as mulheres têm uma relação tão intensa ao que no fundo não é nada – imagens, recortes de papel? Será sua identidade tão fraca assim? Por que elas acham que devam tratar ‘modelos’ – manequins – como se fossem ‘modelos’ – paradigmas? Por que as mulheres reagem diante do ‘ideal’, qualquer que seja a forma que esse ideal assuma no momento, como se se tratasse de um mandamento inquestionável?

Não se trata de as identidades das mulheres serem fracas por natureza. Foi a imagem ‘ideal’ que adquiriu importância obsessiva para as mulheres porque era esse seu objetivo. (O mito da beleza, Naomi Wolf)

“Era esse seu objetivo”. Uma frase potente da jornalista Naomi Wolf, autora com que tive contato em minhas pesquisas sobre Direito e Feminismos, sobre criação do ideal e seu desejo de criar réplicas, seguidoras fiéis que, enquanto focam nessa meta, deixam de focar na criação de enredos e vozes próprias. Uma plano de fundo cruel, já que o ideal parece sempre distante, algo além do arco-íris e inalcançável.

Mas ainda há algo mais, uma promessa que justifica esse fim impossível e que reflete toda a experiência de viver em uma sociedade de bonecas de pano.

Nesse sistema, se não podemos atingir o ideal, podemos ser instrutoras para aquelas que nos sucedem, ainda que, nesse processo, coloquemos sobre nossas herdeiras a expectativa do que não conseguimos alcançar. E moldamos-as, desse modo, para serem bonecas de pano: seres que ganham vida a partir dos sonhos de outros, que não se quebram, mas se rasgam aos poucos, desfeitas nas linhas e entrelinhas.

Onde começa o caminho da fuga?

É uma bola de neve, não há dúvidas. Durante anos, carreguei a culpa de não ser como minha mãe idealizava. E é este o sentimento que isto traz à tona: uma culpa que nasce não se sabe onde e se alastra por nossos ossos, até amolecê-los. 

A verdade, contudo, se podemos dizer que há uma, é que a culpa é tripla: é minha, é dela, é nossa. 

Podemos resolver de um dos lados, mas ainda restará outras influências. Sendo assim, não posso apenas depositar essa carga sobre os ombros de minha mãe ou de minhas antepassadas. Do contrário, reforço a teoria de que sou apenas um brinquedo: não ajo por mim, mas pelas ações de terceiros.

O que descobri aos 22 anos, então, é que, se é impossível deixar de ser a boneca de pano que me constitui, ao menos eu deveria assumir o controle sobre ela. Ela pode não deixar de ter a voz que tem, mas pode decidir suas falas. E pode se tornar mais forte. Pode enrijecer os panos sob os quais se esconde e pode brincar de ser dona de seus atos. Pode oferecer resistência. 

Se depois de 5 anos desse devaneio, eu tive sucesso? Posso apenas dizer que, de vez em quando, algo sai da linha. Há falas dissonantes, momentos de silêncio em que me deixo ser apenas ela. Acima de tudo, minha boneca ainda tem muitas perguntas, muitos caminhos para descobrir junto à série da sociedade de bonecas de pano de que ela faz parte.

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